quarta-feira, 22 de junho de 2011

Inferno e Céu - 2ª Parte

Repetindo o post de semana passada, o desenho eu que fiz, Moana (acabouminhabic.blogspot.com) fez o processo de finalização da imagem. Aliás, ela criou uma perspectiva que não existia na imagem. Pura mágica.

2ª Parte - Dor

Dentro do prédio, o aspecto soturno e abandonado desapareceu. As paredes eram feitas de ouro e prata, no centro do saguão havia uma fonte com uma escultura da deusa Vênus; de sua boca jorrava uma água límpida e cristalina. Ao fundo destacavam-se de todo esse luxo, três portas gigantescas feitas de madeira adornadas com obras de arte que ficavam penduradas ao redor.

O menino que me guiava, caminhou até a fonte, inclinou-se e molhou a cabeça, depois bebeu um pouco d’água. Em seguida, pediu para que eu me aproximasse e instruiu-me a repetir o mesmo gesto:

- A água desta fonte não mata a sede, ela revive o espírito. Bebas para que assim a morte e o medo se calem. Desta maneira, poderemos prosseguir o teu caminho.

Lavei-me e bebi da água. A morte e o medo silenciaram e com isso prossegui meu caminho com o menino até a primeira porta, a da esquerda. Nela lia-se “Dor”. O garoto retirou da sacola um molho de chaves, apanhou a chave dourada, colocou-a na maçaneta e destrancou a primeira porta.

- Entre e não tentes olhar para o meu rosto, tão pouco olhes para trás. Lá dentro, depois que a porta se fechar estarás por conta própria. Contigo não irei, pois quem te aguarda aí dentro, não tem o menor interesse na minha juventude.

Assim entrei. Dei de cara com uma sala branca e espaçosa. No centro da sala havia uma mesa de madeira escura e com a aparência luxuosa, sentado nela estava um Ser, que trajava belas roupas. Em uma das mãos, havia um charuto e na outra, uma caneta; ao seu lado, no chão, havia duas mulheres costuradas pelas costas uma à outra. A da direita, era obesa e tentava arrastar a outra até um prato de legumes e verduras, a da esquerda era muito magra, como se tivesse uma doença terminal. Arranhava as pernas da primeira, na tentativa de arrastá-la para o prato de carne e massa. Os pratos estavam depositados em cantos opostos da mesma parede.  Na parede atrás do Ser, havia um senhor de aparência idosa; no entanto, digo idoso porque não havia como identificar a idade: ele estava em carne viva. De suas mãos e pés moedas de prata e bronze brotavam e ele as arrancava desesperadamente, como se arranca uma casca de machucado, ou um carrapicho do mato. Todos, exceto o Ser, gritavam de agonia e dor.

O Ser apagou o charuto na mesa, levantou-se e veio em minha direção, me analisando de cima a baixo. Rodeou-me e pude ouvir o som da sua respiração, como se um cão farejasse algo. Parou na minha frente e disse:

- Para sair daqui, tu deverás escrever nestas paredes sobre tua vida, até que estejam preenchidas. O tempo que levarás para concluíres, não importa. Sempre que te perguntarem algo, escreva na parede, não tens a permissão de falares aqui dentro, apenas podes escutar e escrever, caso contrário, teu corpo e alma ficarão aqui e sofrerão o destino dos desobedientes.

Após dizer-me essas palavras, me entregou a caneta que tinha em mãos. Eu caminhei até a primeira parede, que era para onde ele estava olhando. Comecei a escrever sobre meus primeiros anos de vida. Conforme eu escrevia, o Ser permanecia sentado, fumando e por horas eu escutava uma gargalhada estrondosa, principalmente enquanto eu mencionava as surras e broncas dadas pelos meus pais. Enquanto eu escrevia, perdi a noção do tempo, toda vez que meu corpo pesava, o Ser gritava: “Não pare!” e eu continuava a escrever. No entanto, as risadas e ordens deram lugar ao silêncio e ao espanto dele. Eu escrevia sobre como meu pai havia morrido, quando ele se aproximou e disse:

- Em uma palavra, escreva o quanto sofreste pela morte do teu pai.

Pensei por algum tempo, senti aquela mesma tristeza e escrevi: “Muito!”.

- O sofrimento é o alimento do desespero das pessoas que vêm até aqui - disse - mas muitos dos que aqui caminham não aprenderam com suas vivências. A redenção do mundo dos vivos de nada vale no mundo dos que passaram. Aqui não há mais a dor da vida e sim o sofrimento eterno da alma. Lembra-te sempre que pela dor se aprende. Aquele que nega a dor, nega o conhecimento de si. Portanto, sigas em frente, para a próxima parede, esta aqui não é tua. Fizeste de tuas dores, obras e não padeceste. Agora deves escrever sobre tua adolescência na parede onde estão os pratos.

Fiz o ordenado, comecei a escrever na parede ao lado sobre tudo o que passara desde a minha primeira experiência adolescente, até os dias na escola e as relações familiares desenvolvidas. À medida que eu escrevia, as mulheres gritavam para que eu parasse de escrever e as ouvisse. Até que uma delas bradou:

- Eu nunca dei valor ao que eu comia, e o que eu comia me trouxe até aqui! Oh, meu Deus, minha alma! A dor do alimento que aqui me atormenta é a fome do desprezo de quem me alimentei quando viva! Agora estou inchada e podre por dentro! Compartilho as dores e o peso desta que está amarrada a mim, não permitindo que eu coma!

A da direita ao ler sobre minha mãe e seus conselhos, desatou a chorar e arranhar a si, gritando:

- Eu nunca me alimentei do que deveria! Jamais escutei alguém, nem mesmo os meus pais! Só me importei, quando viva, com minha aparência e posição social! Eu não olhei para ninguém! Agora estou acabada em vida e em morte. Alimento-me também da dor da minha companheira! Acabei magra e esquelética, desprezada por minha companheira, que não me deixa comer também. Assim, jamais serei bonita novamente. Tu que segues pelo caminho do meio, podes parar de escrever, porque essa parede não é tua. Caminhes até a próxima, onde as moedas caem e escrevas sobre esperança para teus próximos anos.

Caminhei até a outra parede, conforme solicitado, mas antes que eu tocasse com a caneta o senhor disse:

- O castigo aqui nos dado é justo e eterno. Não há esperança, portanto essa parede não é tua também. Porém, queria contar-te meu fardo.Tive sucesso na vida, tive dinheiro, mulheres e morri jovem. Enquanto vivo, derrubei e esmaguei os meus inimigos, fiquei sozinho. Meu castigo é justo, pois desde que nasci, o dinheiro e minha ganância me valeram mais que minha vida. Quando perdi meus pais, não gastei nem mesmo um centavo para dar-lhes um enterro digno. Joguei-os numa vala de indigentes.  Minha carne hoje é podre e os vermes devoram-na com nojo. Minha alma é atormentada pelo meu pecado. Agora vá. Teu tempo aqui acabou.

Um barulho tomou conta da sala, as paredes e o teto racharam, meus rabiscos sumiram e a sala foi devorada por uma escadaria em formato de espiral que surgiu no chão. As almas caíram no abismo e eu fui puxado por uma força até a entrada daquele lugar. Quem olhava para baixo no abismo que se abriu, escutava gritos de dor e agonia, chibatadas, gargalhada, muito choro e pesar. O Ser disse:

- Aqui é o inferno! Cada andar dessas escadarias compreende uma pena. Aquelas almas foram atiradas e conduzidas para seus devidos lugares aqui. No entanto, tu não és daqui, por isso vá embora e contes o que vistes. O meu nome é o que menos importa no relato, já que eu tenho tantos. Mas se quiseres, contes que encontrastes com o Juiz e o Júri deste lugar, pois é o que faço. Eu sou dono deste lugar, julgo e condeno. Tu estás absolvido. Ao sair daqui, bebas novamente da fonte e te purificas. Dessa vez, laves a mão esquerda também. Podes ir.

Assim, saí pela mesma porta de madeira. Lá dentro ficaram as almas, minhas dores e meu desespero. Do lado de fora, o menino já abria a próxima porta. Enquanto isso, fui até a fonte, lavei a mão esquerda, bebi da água, molhei a cabeça e chorei.

- Se choras é porque puro estás. Levantas-te. Não temos muito tempo, se tens piedade, vivas por estas pobres almas! Agora anda! A próxima porta é pesada e não posso abri-la de novo. - disse o menino.

Aos poucos, a tristeza se perdeu nas águas da fonte. Aqueles pensamentos de dor também. Sobrou-me uma palavra no meio daquela confusão: “esperança”. E assim que ela surgiu, dirigi-me à porta direita, a porta da “Fé”.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Inferno e Céu - 1ª Parte

O desenho fui eu quem fiz, mas o tratamento (cores, texturas, ou seja, o mais difícil) da imagem ficou por conta da minha amicíssima e mágica Moana (blog: acabouminhabic.blogspot.com)

1ª Parte – Antes da noite.


Outro dia fiz uma viagem. Uma pessoa me contou que além daquela estrada havia encontrado sua vida. Voltara para cá após alguns anos, decidida a mudar a vida de todos, inclusive a dos mais próximos; e um deles; eu era um passante daquela rua naquele dia chuvoso. Ela me contou sobre a bela experiência que viveu e me mostrou as maravilhas que trouxera de lá, coisas tão preciosas e tão bonitas, que não consigo descrever.

No meu caminho não havia obstáculos intransponíveis, mesmo após caminhar durante algumas horas em uma estrada irregular, fadigado e com frio. Na estrada que não tinha um limite visível as únicas coisas avistadas no horizonte eram nuvens, muitas e de vários formatos e bem ao longe quase no limiar de onde se perdia o horizonte havia uma árvore seca. Após três horas caminhando cheguei à metade do dia de caminhada e ia também alcançando a árvore. Meu horizonte agora havia mudado. De longe eu avistei um prédio e ao lado da árvore, agachado, havia um menino. Talvez estivesse descansando de tanto andar, porém ao me ver, levantou-se rapidamente, pegou uma sacola cor de vinho que jazia nos pés da árvore e colocou-a sobre os ombros; feito isso, voltou para a  estrada lentamente, retardando o passo a fim de que eu pudesse alcança-lo. Quando eu estava a uma distância de sete passos do pequeno, ele gritou:

- Apresse mais teu passo! Temos que chegar ao prédio antes que a noite apague a estrada e o nosso caminho! A noite aqui, nada se vê e nem se escuta; há somente o odor de água podre vinda do outro lado, onde o rebanho de um fazendeiro morreu.

Como solicitado, caminhei mais rápido. O menino na frente me guiava pelo caminho, sem pronunciar mais nenhuma palavra depois do aviso anterior. Reparei que ele usava roupas surradas demais, sandálias velhas cheias de furos, os cabelos castanhos e lisos eram emaranhados e sujos de areia. Cabelos de um garoto explorado. Não consegui, no entanto, durante o caminho ver a face do menino, pois durante todo o caminho e até mesmo durante o aviso, ele não se virou para trás. Apenas continuava andando rápido em uma marcha violenta travada contra as pedras e a areia do chão. A sacola ele não mudava nem de ombros, segurava firme, sem sequer balançá-la.

Quase anoitecendo, chegamos ao pé da construção velha. Na frente do prédio havia um portão enorme, com detalhes dourados nas bordas; pareciam espinhos, fogo e água. Acima brilhavam inscrições prateadas, que pareciam ter sido feitas por um excelente artesão. Diziam: “Aqui se vai à glória e ao desespero. Aos firmes, compadecei-vos. Aos benditos, rogai-vos. Se são puros, aprendei a pedir. Fardos aqui não cabem. Ficai do lado de fora os limpos e os destemidos.”

Percebendo que impressionaram-me as palavras do portão, o menino (sem se virar para mim) disse:

- Se pode ler o que está escrito, é porque é sua hora de entrar. Não olhe para trás, pois o futuro pode te deixar. Eu ainda irei te guiar aqui até uma parte. Portanto, não se perca.

O menino entrou no prédio e eu fiquei parado por alguns segundos naquele portão recuperando o fôlego e a razão. Não havia um caminho de volta e nem de desistência, eu podia somente seguir em frente. O portão aberto e ao lado as duas figuras mais estranhas estavam a me dar boas vindas. O medo e a morte cantavam ópera. E assim como um cordeiro deve seguir o caminho do pastor, eu entrei.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Divagações acerca das nuvens - Parte I


Já estive com a cabeça nas nuvens,
mas não com o coração.
Gosto de como ela me olha
e quando ela me segue.
É tocante como o vento que a sopra

segue no mesmo andamento que meus passos.

Sinto ciúmes quando ela olha para outros.
E ela sempre o faz, mas eu a perdôo.
Então ela fica alguns dias sem aparecer,

e eu confirmo: ela não serve pra mim.
Como é curta a distância entre ter muito e não ter nada!

Chego em casa e chuto a mesa...
No chão, cacos de vidro, porcelana e sentimentos
Dormirei, e quando acordar, certamente já terei esquecido essa baboseira...
...depois acordarei novamente.

(por Zé Mingau)

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Amar – Chorar – Sentir – Sorrir


Amo sentir vontade de sorrir por algo que havia chorado

Já sorri por nunca ter chorado sentindo que não amei

Já chorei por amar e não sorrir por sentir que não fui também amado

Mas sinto que, sorrindo, mostro amor até pelo que chorei


E em escolher a ordem das palavras consiste o viver

Palavras tais como chorar, sentir, amar, sorrir...

Se amei, porque chorei, se sorri, o que senti

Não vivo se sigo sem saber a ordem que hei de escolher


(por Zé Mingau)

segunda-feira, 16 de maio de 2011

E(s)vair

Assim como o jogador que formava a dupla de ataque com Edmundo, chamava-se Evair.

Evair, que lembra esvair, esvair-se.

“Esvair e ser. Esvaziar-se e continuar sendo...”, repetia Evair, em sua mente, ao sentir-se a esvair.

Como se imaginasse que o recipiente, sem seu conteúdo, simplesmente não é, temia que ao esvair-se poderia não continuar sendo. E insistia em querer ser.

Evair não sabe se é e o que é, e ao se esvair não sabe se continuará sendo.

Ao menos, uma certeza ele tem: chama-se Evair, ou não.


(por Zé Mingau)

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Flexibilidade Ortográfica


Entendo por Flexibilidade Ortográfica a possibilidade de fletir o sentido das palavras até que se tornem o que eu quero que sejam.
Não que esse seja realmente o significado, mas é assim que eu quero que seja. E isso já é pôr em prática a minha teoria.
Nesse exato momento quero que Preocupação seja um doce feito com frutas cítricas e mel no norte da Miséria, que é um vilarejo muito fértil situado nos fiordes noruegueses.
Em Miséria, uma vez por ano comemora-se o Trabalho, que é uma data especial onde todos comem Preocupação deitados em suas redes enquanto lêem historinhas do Patrão, comediante local, e ao pôr do sol, enquanto assam Memorandos (semelhantes a marshmellows) na fogueira, relembram o quanto tinham medo da Demissão, uma espécie de ‘bicho papão’, que apesar de assustar as crianças, todos sabem que não existe.


(por Zé Mingau)