Dentro do prédio, o aspecto soturno e abandonado desapareceu. As paredes eram feitas de ouro e prata, no centro do saguão havia uma fonte com uma escultura da deusa Vênus; de sua boca jorrava uma água límpida e cristalina. Ao fundo destacavam-se de todo esse luxo, três portas gigantescas feitas de madeira adornadas com obras de arte que ficavam penduradas ao redor.
O menino que me guiava, caminhou até a fonte, inclinou-se e molhou a cabeça, depois bebeu um pouco d’água. Em seguida, pediu para que eu me aproximasse e instruiu-me a repetir o mesmo gesto:
- A água desta fonte não mata a sede, ela revive o espírito. Bebas para que assim a morte e o medo se calem. Desta maneira, poderemos prosseguir o teu caminho.
Lavei-me e bebi da água. A morte e o medo silenciaram e com isso prossegui meu caminho com o menino até a primeira porta, a da esquerda. Nela lia-se “Dor”. O garoto retirou da sacola um molho de chaves, apanhou a chave dourada, colocou-a na maçaneta e destrancou a primeira porta.
- Entre e não tentes olhar para o meu rosto, tão pouco olhes para trás. Lá dentro, depois que a porta se fechar estarás por conta própria. Contigo não irei, pois quem te aguarda aí dentro, não tem o menor interesse na minha juventude.
Assim entrei. Dei de cara com uma sala branca e espaçosa. No centro da sala havia uma mesa de madeira escura e com a aparência luxuosa, sentado nela estava um Ser, que trajava belas roupas. Em uma das mãos, havia um charuto e na outra, uma caneta; ao seu lado, no chão, havia duas mulheres costuradas pelas costas uma à outra. A da direita, era obesa e tentava arrastar a outra até um prato de legumes e verduras, a da esquerda era muito magra, como se tivesse uma doença terminal. Arranhava as pernas da primeira, na tentativa de arrastá-la para o prato de carne e massa. Os pratos estavam depositados em cantos opostos da mesma parede. Na parede atrás do Ser, havia um senhor de aparência idosa; no entanto, digo idoso porque não havia como identificar a idade: ele estava em carne viva. De suas mãos e pés moedas de prata e bronze brotavam e ele as arrancava desesperadamente, como se arranca uma casca de machucado, ou um carrapicho do mato. Todos, exceto o Ser, gritavam de agonia e dor.
O Ser apagou o charuto na mesa, levantou-se e veio em minha direção, me analisando de cima a baixo. Rodeou-me e pude ouvir o som da sua respiração, como se um cão farejasse algo. Parou na minha frente e disse:
- Para sair daqui, tu deverás escrever nestas paredes sobre tua vida, até que estejam preenchidas. O tempo que levarás para concluíres, não importa. Sempre que te perguntarem algo, escreva na parede, não tens a permissão de falares aqui dentro, apenas podes escutar e escrever, caso contrário, teu corpo e alma ficarão aqui e sofrerão o destino dos desobedientes.
Após dizer-me essas palavras, me entregou a caneta que tinha em mãos. Eu caminhei até a primeira parede, que era para onde ele estava olhando. Comecei a escrever sobre meus primeiros anos de vida. Conforme eu escrevia, o Ser permanecia sentado, fumando e por horas eu escutava uma gargalhada estrondosa, principalmente enquanto eu mencionava as surras e broncas dadas pelos meus pais. Enquanto eu escrevia, perdi a noção do tempo, toda vez que meu corpo pesava, o Ser gritava: “Não pare!” e eu continuava a escrever. No entanto, as risadas e ordens deram lugar ao silêncio e ao espanto dele. Eu escrevia sobre como meu pai havia morrido, quando ele se aproximou e disse:
- Em uma palavra, escreva o quanto sofreste pela morte do teu pai.
Pensei por algum tempo, senti aquela mesma tristeza e escrevi: “Muito!”.
- O sofrimento é o alimento do desespero das pessoas que vêm até aqui - disse - mas muitos dos que aqui caminham não aprenderam com suas vivências. A redenção do mundo dos vivos de nada vale no mundo dos que passaram. Aqui não há mais a dor da vida e sim o sofrimento eterno da alma. Lembra-te sempre que pela dor se aprende. Aquele que nega a dor, nega o conhecimento de si. Portanto, sigas em frente, para a próxima parede, esta aqui não é tua. Fizeste de tuas dores, obras e não padeceste. Agora deves escrever sobre tua adolescência na parede onde estão os pratos.
Fiz o ordenado, comecei a escrever na parede ao lado sobre tudo o que passara desde a minha primeira experiência adolescente, até os dias na escola e as relações familiares desenvolvidas. À medida que eu escrevia, as mulheres gritavam para que eu parasse de escrever e as ouvisse. Até que uma delas bradou:
- Eu nunca dei valor ao que eu comia, e o que eu comia me trouxe até aqui! Oh, meu Deus, minha alma! A dor do alimento que aqui me atormenta é a fome do desprezo de quem me alimentei quando viva! Agora estou inchada e podre por dentro! Compartilho as dores e o peso desta que está amarrada a mim, não permitindo que eu coma!
A da direita ao ler sobre minha mãe e seus conselhos, desatou a chorar e arranhar a si, gritando:
- Eu nunca me alimentei do que deveria! Jamais escutei alguém, nem mesmo os meus pais! Só me importei, quando viva, com minha aparência e posição social! Eu não olhei para ninguém! Agora estou acabada em vida e em morte. Alimento-me também da dor da minha companheira! Acabei magra e esquelética, desprezada por minha companheira, que não me deixa comer também. Assim, jamais serei bonita novamente. Tu que segues pelo caminho do meio, podes parar de escrever, porque essa parede não é tua. Caminhes até a próxima, onde as moedas caem e escrevas sobre esperança para teus próximos anos.
Caminhei até a outra parede, conforme solicitado, mas antes que eu tocasse com a caneta o senhor disse:
- O castigo aqui nos dado é justo e eterno. Não há esperança, portanto essa parede não é tua também. Porém, queria contar-te meu fardo.Tive sucesso na vida, tive dinheiro, mulheres e morri jovem. Enquanto vivo, derrubei e esmaguei os meus inimigos, fiquei sozinho. Meu castigo é justo, pois desde que nasci, o dinheiro e minha ganância me valeram mais que minha vida. Quando perdi meus pais, não gastei nem mesmo um centavo para dar-lhes um enterro digno. Joguei-os numa vala de indigentes. Minha carne hoje é podre e os vermes devoram-na com nojo. Minha alma é atormentada pelo meu pecado. Agora vá. Teu tempo aqui acabou.
Um barulho tomou conta da sala, as paredes e o teto racharam, meus rabiscos sumiram e a sala foi devorada por uma escadaria em formato de espiral que surgiu no chão. As almas caíram no abismo e eu fui puxado por uma força até a entrada daquele lugar. Quem olhava para baixo no abismo que se abriu, escutava gritos de dor e agonia, chibatadas, gargalhada, muito choro e pesar. O Ser disse:
- Aqui é o inferno! Cada andar dessas escadarias compreende uma pena. Aquelas almas foram atiradas e conduzidas para seus devidos lugares aqui. No entanto, tu não és daqui, por isso vá embora e contes o que vistes. O meu nome é o que menos importa no relato, já que eu tenho tantos. Mas se quiseres, contes que encontrastes com o Juiz e o Júri deste lugar, pois é o que faço. Eu sou dono deste lugar, julgo e condeno. Tu estás absolvido. Ao sair daqui, bebas novamente da fonte e te purificas. Dessa vez, laves a mão esquerda também. Podes ir.
Assim, saí pela mesma porta de madeira. Lá dentro ficaram as almas, minhas dores e meu desespero. Do lado de fora, o menino já abria a próxima porta. Enquanto isso, fui até a fonte, lavei a mão esquerda, bebi da água, molhei a cabeça e chorei.
- Se choras é porque puro estás. Levantas-te. Não temos muito tempo, se tens piedade, vivas por estas pobres almas! Agora anda! A próxima porta é pesada e não posso abri-la de novo. - disse o menino.
Aos poucos, a tristeza se perdeu nas águas da fonte. Aqueles pensamentos de dor também. Sobrou-me uma palavra no meio daquela confusão: “esperança”. E assim que ela surgiu, dirigi-me à porta direita, a porta da “Fé”.